quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Conchinhas coloridas

Ainda lembro daqueles dias que carregavam ares de verão, mesmo que não fosse verão, e do entusiasmo em cima de cada nova descoberta em nossas aventuras na praia. Aventuras, pai, porque é isso o que aqueles dias significavam para mim. Recordo de todas as conchinhas e do percurso incansável que realizávamos para catá-las, uma a uma, roubá-las da areia para que você, quando chegássemos em casa – numa casa que na época não abrigava a sobriedade e escuridão que, agora, estão lá de alguma forma – pusesse tudo em uma jarra que serviria para enfeitar a nossa sala. Mas antes alinharíamos uma a uma com cuidado e selecionaríamos as mais bonitas. Eu sempre tinha uma preferida, você também, e era sempre a mesma concha, a sua e a minha. Geralmente, seria uma colorida, com tons de rosa e laranja borrados no branco, que mais do que tudo lembravam o espaço borrado de cores em volta do sol no céu azul da praia. A jarra ficaria ali, e eu não cansaria de olhar para ela, admirando nossas aquisições do dia. E, então, eu iria te pedir, dia após dia, para que fôssemos à praia juntar conchinhas, quer fosse verão ou não.
A praia era nossa, minha e de meu pai, e nada mais me importava. Você saberia me responder o que quer que eu perguntasse sobre o mar, os peixes, o céu, as conchas. Hoje me pergunto se tudo o que você dizia às minhas insistentes e inumeráveis perguntas era correto ou se você jogava com a minha imaginação. Não importa, eu acreditaria, e você não me deixaria sem uma resposta.
Eu tinha menos de dez anos e você me levaria para caminhar na praia e brincar com o mundo, porque era essa a sensação de estar lá, juntando as conchas e tentando pegar os peixinhos pequenos e velozes da beira do mar, que eu nunca conseguiria. O verão nunca teria um fim para nós, e a nossa casa nunca seria triste como é agora, porque tínhamos a jarra coberta até o fim por conchinhas especiais e preferidas que nos lembrariam que, mesmo num dia de frio, as cores estavam ali.
Só me pergunto agora, pai, onde foram parar todos os meus sonhos de criança, que se perderam em algum lugar bem longe daqui. Algum lugar sem você, sem a nossa praia, sem verão ou conchinhas coloridas. Me pergunto em que momento o mundo deixou de ser o nosso parque de diversões e os dias uma aventura após a outra. O que aconteceu com aquela magia, pai? Sei que ela não pode ter desaparecido sozinha, nós devemos ter deixado que ela se fosse. Não sei em que momento exatamente eu simplesmente perdi todo o elo que nos juntava e aquela certeza de que eu jamais precisaria de outra pessoa na minha vida porque eu tinha você. E ter você significava ter a vida completa para mim, quando só ansiaria por um novo dia em que me levasse junto para fazer o que quer que você fosse fazer. Alguma coisa se perdeu ali, naquele céu de verão, e não sei bem dizer se ela morreu ali ou simplesmente foi desgastando-se com o tempo.
Quando a nossa sala de estar tornou-se escura, lembro-me de noites à mesa de jantar em que pude ver claramente que os dias na praia tornavam-se uma realidade distante. Continuo sem saber o que rompeu-se entre nós, mas eu soube instantaneamente pelo seu olhar cansado que você não era mais meu pai, ou não mais aquele que brincaria comigo e faria até a noite parecer cheia de vida. Jantaríamos em silêncio, porque você teria a voz gasta demais para falar comigo e eu não saberia como chegar até você sem a proximidade dos nossos momentos juntos. Depois, ainda jantaríamos em silêncio, mas porque não teríamos mais assunto para falar um com o outro. Vez ou outra, você falaria sobre o seu trabalho, e o quanto tem trabalhado demais, e perguntaria o que eu ando fazendo quando estou fora de casa. E eu já não era mais uma criança.
Se a jarra ainda continha as conchas ou se estaria vazia, eu não saberia. Na verdade, não sabia onde estaria a jarra. Em nenhum lugar dali, no entanto, algo me dizia. Esqueci da jarra, então, assim como esqueci de todo o futuro que eu havia planejado anos antes quando acreditava, ainda, que na vida tudo era possível. Enxergava viagens e passeios que faríamos, e uma casa cada vez mais enfeitada por lembranças em forma de pedaços de mundo que colheríamos. Nossa casa cheiraria a mar, à areia, e guardaria a imensidão de tudo o que há lá fora em um espaço tão pequeno, um espaço nosso. E acreditava que veria esse espaço se construir, que contaria cada passo que tomaríamos, e não pensei que um dia eu fosse crescer. Eu não vi, não vi nosso espaço se destruir, nem vi quando tão rápido nele deixaram de habitar as esperanças e os sonhos que você havia me ajudado a depositar ali, e não pode negar que teve sua parte nisso, embora tenha facilmente feito tudo dar lugar à seriedade e ao cansaço. Acho que eu te perdi para o cansaço, pai.
Entretanto, se você acha que fez com que as minhas fantasias pueris fossem embora, você se engana. Elas ainda estão ali. Elas ainda são o enfeite dos móveis da nossa sala, elas ainda estão presentes na mesa de jantar, nas conversas que nós deixamos de ter um com o outro, em algum espaço pertencente àquilo que quase deixou de existir. Não seria tão fácil assim. Não seria natural acordar para a vida no mesmo momento em que você decidiu que eu deveria, no mesmo instante em que você parou de construir comigo o que constituía o meu mundo. Eu ainda vejo tudo isso em algum lugar, pai. E eu sei que não perdi para sempre, não perdi esses resquícios de infância em mim, o que eu perdi, na verdade, foi você.
Nossa casa não cheiraria a mar, cheiraria a mofo. Cheiraria a coisa velha e deixada de lado, e as janelas estariam sempre fechadas, assim eu não mais enxergaria o mundo. O mundo tornara-se uma prisão, na qual eu não poderia desfrutar do tanto que sonhei, que sei que está em algum lugar, perdido entre o sofá em que me sento enquanto estática olho para o chão e o seu quarto, logo mais adiante no corredor, onde sei que você estaria.
Até que um dia você veio e me disse que o nosso quarto de hóspedes, sempre vazio, passaria a ser habitado. Mas, pai, somos só eu e você, sempre fomos só eu e você. Parece que isso não era mais suficiente para você. Era uma mulher, e era morena e tinha olheiras, e quando eu te perguntei o que ela estaria fazendo ali você me respondeu que ela estaria na nossa casa para cuidar de você, e cuidar de mim também. Não precisaria de ninguém para cuidar de mim, desejaria ter te dito isso antes.
Agora eu sei, existem as mais diversas facetas de dor. Há aquela que arde, que lateja em algum lugar bem dentro, tão dentro que se passa a sentir quase que todos os órgãos do corpo gritando, embora a dor não esteja neles. E tem aquela que não se pronuncia, que não exala as faíscas inquietantes – simplesmente permanece ali em forma de ausência. Não é somente o vazio, mas um vazio onde uma vez já esteve cheio. A dor da perda daquilo que já se teve um dia.
O silêncio e o escuro, as memórias confusas, a mistura das fantasias esquecidas com o mundo real brutal é só o que vejo. Mas até que parte daquelas memórias foram realmente esquecidas? Se eu pudesse saber, não precisaria preocupar-me em relembrar, em repassar na mente tantas vezes um universo abandonado. Se pudesse resgatar a parte do meu imaginário que se perdeu, talvez compreenderia melhor o porquê dessa distância cruel que se estabeleceu aqui – entre mim e o passado, entre mim e você.
Foi assim que aconteceu: você passou a adquirir as olheiras daquela mulher que entrou em nossa vida. Não que acredite que ela tenha tirado você de mim, porque o único capaz disso seria você mesmo, contudo na minha visão já não tão infantil o que vejo é o caos do qual você estava tentando fugir. E a fadiga por ter carregado toda uma mesma vida durante anos. Não te culpo pelo cansaço, pelo desejo de deixar passar a vida pelos seus olhos sem se importar, pelo desgaste em trabalhar numa relação na qual você tinha que ser sempre o cuidador. Você também mereceria ser cuidado, e você não tinha mais forças para se preocupar comigo. Eu vejo claramente, agora, o contraste entre as nossas duas épocas. Nós já fomos felizes, pai. Mas nós só éramos felizes porque você era feliz. Em algum momento, o pedaço de você que ansiava desesperadamente escapar e esquivar-se de tudo isso, de todas as obrigações com a vida e comigo, tornou-se mais relevante do que antigos passeios na praia que só existiam numa memória gasta e num universo pueril quase imaginário. E você não era mais feliz, subitamente. Eu via em seus olhos toda a amargura e a insatisfação. E via adentrar por alguma fresta das portas da nossa casa a angústia da convivência, a mediocridade de uma rotina sem arriscar-se, e uma mente que já não abrigaria a capacidade de dividir comigo meu mundo sonhador e abstrato.
E é por isso que, por muito tempo, abandonei grande parte de mim naquela casa que tornara-se hostil e resolvi fugir, bem como você havia feito. Só que você fez isso sem mover-se de lugar. Você pode dizer que fui eu quem te abandonou, pai, porque saí de casa sem te dar um último tchau ou te contar sobre a mágoa que reside em mim há tanto tempo. Você pode atribuir a mim toda a culpa, a irresponsabilidade, a destruição do nosso vínculo. E eu iria te dizer que não havia mais vínculo a ser destruído, e talvez então você reconheceria que continuar morando com você no mesmo espaço físico não era prova de nada. Simplesmente saí, e podem dizer que foi um ato de covardia. Não foi, pelo contrário. Foi a coragem, o ressentimento, mas no fundo, em algum lugar, não sei nem de que forma, ainda havia a esperança. Um resquício de ilusão, uma pequena chama que tentou ser apagada, porém continuou em mim por acreditar que a vida ainda pode ser bonita. Por acreditar que ainda posso alcançar a imensidão que vi um dia estando lá fora, por saber que existe mais, que há todo um universo do outro lado do oceano. Que haverá outras casas que abrigarão mais cores do que a de que fugi, e possivelmente serão ainda mais coloridas do que essa mesma já foi um dia. Que existem outras praias, ainda que no mesmo mar, e inúmeras outras conchas a ver por lá. Elas são trazidas pelo mar, e se ninguém pegá-las da areia, o que acontece com elas? Essa foi a pergunta que eu nunca te fiz, pai. Para onde vão as conchas? Acho que terei de descobrir por mim mesma.
Você não acreditaria se te dissesse, mas acredito na espera por dias mais claros, ainda. Acredito no som da água tocando a areia, no farfalhar das folhas quando caem sobre as ondas que correm sem sentido. As ondas não seguem um padrão exato, não é mesmo? Elas andam, simplesmente. Elas não correm para trás. Algumas são mais altas, mais fortes, mais velozes. Algumas fazem mais barulho. Eu sou como uma dessas ondas, pai. Não sei exatamente para onde estou indo, no entanto a única certeza que tenho é de que me movimento para frente, meio desorientada e sem caminhos traçados previamente. Estou andando, é só o que estou fazendo. E se fechar os olhos por alguns segundos, onde quer que esteja, posso enxergar todo o mundo que vi há anos atrás, em uma esfera completamente diferente. É como se pudesse me transportar para lá, instantaneamente, porque posso ver com clareza o céu azul mesclando-se ao oceano verde-água com pontadas douradas reluzentes. Eram raios de sol. E eu achava, também, que quando as conchas apresentavam rabiscos amarelados eram os raios de sol. Não eram, provavelmente, embora para mim fosse uma realidade incontestável. O que importa verdadeiramente, agora, é que posso fechar os olhos e enxergar tudo isso, e ainda ouvir bem lentamente o barulho do mar ao fundo, de forma que quase acredito que seja real. As angústias se vão, subitamente, e eu continuo ali – em meio ao mar imenso ouvindo o bater das ondas. Continuarei ali, imóvel, até que me afunde na profundidade da água imaginária e perceba que não passa de uma memória, a qual se torna cada vez mais apagada e distante com o tempo.
E é por isso que eu fui diferente de você, que desistiu de buscar pela vida que você soube que poderia ser sua se superasse os medos, o pudor e a carência de forças para agir. Eu vim para o mundo que sei que sempre esteve ali além da cidade desolada e pacata de minha infância, e deixei a vida que pertencia a você ser somente sua. Isso mesmo, eu me pus para fora. Facilitei o caminho para que você lidasse com a sua dor - pode abraçar a depressão da maneira que lhe convier, pode guardar todo o desagrado e a falta de vontade para você. Eu deixei o passado intacto onde deveria estar: nas minhas lembranças. Vou fingir que não aconteceu o momento em que o encanto se perdeu. Guardarei só a parte em que éramos felizes, você pode ter certeza.
Eu não tive mãe. Também não tive mais pai, após um tempo. Você quer saber o que eu tenho, então? Eu tenho as fantasias, o olhar doce acerca da vastidão mundana a qual sempre desejei conhecer, e tenho uma jarra repleta de conchinhas coloridas que roubei de uma casa que não abrigava mais tamanha beleza. Eu tenho a praia. Tenho meus olhos, minhas mãos, e enquanto eles forem capazes de tocar a vida, não desistirei dela tão fácil assim. Com você, pai, aprendi as mais diversas lições. Uma delas foi sobre o quão mais simples é entregar-se a uma dimensão onde não há vida, só a solidão que advém do cansaço. A outra, foi há um bom tempo atrás, e não me lembro muito bem, mas era algo sobre enxergar o mundo até onde ele existisse. Foi algo assim, você me perguntou até onde eu conseguia ver o mar. Olhei para os lados, para o fundo, e não via o fim. Eu te disse que ele não acabava nunca. Como acreditaria em tudo o que me soasse belo, realmente acreditei naquele momento que haveria o mar por todos os lados. “Então, se eu começar a nadar sem parar até ali em frente, quer dizer que não vou encontrar outra terra como essa nunca?” Não consigo me recordar do que você disse, mas posso supor e prefiro acreditar que foram as palavras que tenho em minha mente agora. Não sei se elas saíram da sua boca algum dia, ou se eu as inventei, não importa, prefiro guardar na minha lembrança que sua resposta foi essa: Depende do que você estiver procurando – se quiser a terra, você pode nadar até achá-la. Se quiser o infinito, não importa para que direção você ande, é ele que você vai encontrar.

Um comentário:

  1. Talvez você tenha... se dependesse de mim...
    Agora, como não depende, você tá na mesma que eu... ou seja... é, eu não preciso nem falar aonde você está, rs.

    Um dia a gente consegue...

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