quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Da janela do navio.



Observava o espaço aberto como quem quisesse pescar qualquer coisa que estivesse no ar. Alguma emoção, alguns sorrisos, alguns passos de quem se afasta, alguns passos de quem se aproxima. O comportamento das pessoas era tão previsível. E olhava, esperando por algum gesto diferente, alguma reação surpreendente, algum abraço cheio de vida ou até mesmo algum olhar perdido buscando o mar. O mar estava ali em volta para ser visto, afinal. As pessoas, contudo, pareciam imersas dentro de si mesmas.
O mais interessante que havia enxergado fora um casal de velhinhos que pareciam carregar um ao outro em direção ao mirante. Eles caminharam até a ponta e então sentaram em um banco que havia em frente ao céu aberto. O senhor fechou os olhos, logo após a senhora fechou os olhos. Ventava. Havia a brisa, e uma junção de barulhos – o do mundo que existia por fora, e o das pessoas que se enclausuravam ali dentro, muito embora estivessem em um lugar em direto contato com uma das paisagens mais intensas que ela já havia visto. Perguntou-se o que o casal de velhinhos estaria pensando, e o porquê de, ao contrário do resto das pessoas, eles pareciam querer verdadeiramente sentir a brisa.
Imaginou, então, ela e o marido nessa idade, ambos sentados num banco no mirante de um navio, de olhos fechados pensando em algo que ela não conseguia imaginar o que fosse. Sentiu certa repulsa à idéia. O casal de senhores parecia cansado. Aquele momento, aquela parada em frente ao mirante, poderia ser uma das poucas situações de fuga da rotina que eles viriam a ter até o fim da vida. Ela não saberia dizer, na verdade, quanto tempo mais de vida eles teriam. Sentiu-se mal por estar tendo esse tipo de pensamento. O que sentia, no entanto, era que o casal de senhores que queriam sentir a brisa parecia, de alguma forma, estar morrendo ali.
Desviou o olhar do casal por um instante. Desejou poder fechar os olhos e sentir-se ir morrendo aos poucos. Quando ouviu a voz do marido que argumentava com o garçom sobre algum equívoco, sobre cervejas e mais o que quer fosse, foi como se houvesse sido acordada de um longo sonho.
- Estou te dizendo, eu pedi a cerveja uruguaia e você me trouxe essa aqui.
O garçom se desculpou, no que ele continuou a se lamentar. “É uma pena. É uma pena o mau serviço desse navio.” E daí, Fábio, é só cerveja. É tudo a mesma coisa. Não, não é, ele responderia. E então começaria a descrever brevemente cada tipo de fermentação da cerveja. E diria, prove, meu amor, e me diz se essa não é muito melhor do que qualquer outra. Ela diria que sim, embora não visse diferença alguma entre uma e outra.
Enquanto Fábio bebia sua cerveja como quem bebe a última gota de água no deserto, ela focou num grupo de crianças que brincavam no playground. Elas rodavam, corriam, giravam, dançavam, gritavam. Elas tinham mais vida que quaisquer outras pessoas ali.
- Quando a gente é criança, pode sair correndo, pulando e gritando por aí que ninguém nos julga, ninguém dá bola. Ah, eu queria tanto, às vezes, quando dá aquela vontade imensa de sair correndo e gritando, poder fazer uma maluquice dessas. – disse, mais para si mesma do que para o marido.
Ele riu.
- Por que você iria querer sair correndo e gritando por aí?
Ela continuou observando as crianças inquietas que corriam por todos os lados.
- Todo mundo devia ter o direito de poder sair correndo e gritando por aí de vez em quando. As crianças podem. Você vê como elas ficam mais calmas depois disso? Elas liberam a energia, elas aliviam... Sendo adulto, a gente acaba aprendendo a ser tão contido. Essa cautela toda, para quê?
Fábio acompanhou o olhar da esposa às crianças, sem entender o que a intrigava tanto nessa mania de observar.
- Você é engraçada.


Quando anoiteceu, ela e o marido jantaram. O hall do navio era bonito, bem decorado, e as pessoas eram todas bem vestidas. Era uma espécie de situação social na qual ninguém se falava. Cada mesa abrigava uma história diferente. As famílias pareciam todas gente de classe, de modo que a elegância presente no local era inegável. Ela também sabia se vestir. Pusera o colar de pérolas que ganhara do marido na sua noite de noivado. Fábio não lhe dera um anel, como mandava a tradição. Fábio lhe dera um colar de pérolas, porque valorizaria seu colo e seu pescoço. Ele adorava seu pescoço fino e macio. Mais tarde da noite, ele retiraria o colar delicadamente e beijaria a pele suave como um beija-flor que busca o pólen. Alguma parte dele necessitava daquele momento, bem como necessitara dar um colar de pérolas à mulher para certificar-se de que seu pescoço, a parte do corpo que mais apreciava, carregaria algo dele. Ela sempre quisera ser presenteada com um anel de noivado, daqueles em que a caixa é discreta, mas a pedra grande e espelhada. Ela olharia o próprio rosto através da pedra espelhada, seria só levantar a mão sobre o rosto. Ajeitou o colar de pérolas no pescoço e sorriu para o marido. Nesse mesmo instante, o garçom trouxe uma jarra de clericot.
- Achei que você iria gostar. – ele sorriu.
Ela olhou a jarra com as pequenas frutas coloridas.
- Mas você gosta tanto de cerveja.
- É, gosto. Mas você prefere o vinho.
Nesse momento, lembrou-se do motivo pelo qual estava com Fábio. Ele era um bom homem. Eram os dois adolescentes quando se casaram. Ele era um garoto bonito, de bons modos e família rica. Seus pais praticamente haviam assinado o contrato de casamento e dito o “sim” na hora do altar por ela. Eles sabiam que não poderiam pagar uma faculdade para a filha, e nem dar a ela o tanto que gostariam. Amanda tinha apenas 17 anos quando namorava Fábio nos fundos de casa, e os dois olhavam as estrelas no pequeno jardim sem flores. Já na casa dele, haveria muitas flores. Amanda não hesitara em aceitar o casamento, ela gostava de flores. Na casa dele, um quintal enorme, móveis de tapeçaria requintada, um armário com colônias francesas. E ela gostava da maneira como Fábio cheirava. Ele dera a ela um ou outro perfume para que pudesse cheirar seu pescoço com a fragrância de seu gosto, aquela que ele escolhesse. Amanda nunca cogitaria usar um perfume que não fosse os que Fábio lhe dera. Se ela cheirava, era para ele. Da mesma forma, ela vestia o colar de pérolas para ele naquela noite.
Amanda bebeu quase a jarra inteira de clericot durante o jantar. No entanto, comia pouco. Sempre comia pouco.
Em poucos segundos, iniciou-se o ritual de música presente em todas as jantas no navio. Assim que a banda entrava, os casais deixavam a mesa para dançar. Isso é tão brega, ela pensava. Eles dançariam todas as noites, no entanto. O bom senso mandava Amanda levantar e dançar com o marido, assim como todos os outros casais felizes faziam após o jantar. Eles acariciariam a mão um do outro, e ela recostaria a cabeça em seu peito enquanto dançavam. Todos os casais dançavam. Amanda fechou os olhos. Ouvia a música como se ao fundo de um bueiro, como um eco em sua mente.
Pensou: tem uma dor perdida dentro de mim. Tem uma dor em algum lugar, que não sei do que se faz, tampouco de onde veio. Tem alguma coisa fora do lugar. Esse incômodo, esse desespero, essa vontade imensa de me afundar em qualquer outro oceano que não este aqui. Se estivesse longe, estaria longe dessa sensação de desorientação acerca do monte de situações às quais estava submetida. É tanta coisa, é tanta informação... É preciso tanto equilibro e tanta força para conseguir lidar com tudo isso. Uma vida inteira num mesmo corpo, os pensamentos limitados dentro de uma mesma mente, e o esforço para manter-se íntegra. Até quando permaneceria intacta? Essa dor perdida, ela não pertence a lugar nenhum, ela não tem origem. Ela não veio do trauma, ela não veio da perda, ela não veio de um sofrimento concreto. Não conseguiria sequer dizer se ela existe de fato ou se seria imaginação. O que sentia, na verdade, era a distância. Uma distância enorme entre estar, ali, no hall de jantar do navio, presa aos braços do marido e àquela mesma sinfonia que tocava sem nenhum novo acorde e entre onde estaria seu pensamento naquele momento. O pensamento divagando pelos ares, pelos mares, por todas as especulações e caminhos que poderia ter seguido se não estivesse ali. O corpo permanecia no mesmo lugar, e as pernas já se moviam automaticamente de um lado para o outro, enquanto os braços envolviam o pescoço de Fábio sem emoção. Olhou para cima, diretamente nos olhos do marido, no que pôde ver que estavam tão perdidos quanto os dela.


Mais tarde, no quarto, Fábio estava cansado demais para retirar seu colar de pérolas e beijar seu pescoço. Ele sempre retirava o colar antes de fazerem amor. Fábio falava ‘fazer amor’, Amanda não sabia exatamente o que isso significava. Ultimamente, eles não haviam feito nem um nem outro. Nem o que Fábio chamaria de amor, nem o que Amanda faria sem saber dar um nome. Ela despiu-se, enquanto o marido já estava na cama dormindo. Ele sempre dormia fácil, e como ela queria ser assim. Como queria poder deitar, fechar os olhos e apagar. Fábio não devia sequer sonhar durante a noite, de tão profundamente que dormia. Às vezes, via-se falando com ele, e ele já estava dormindo. Amanda sentia-se sozinha quando o marido dormia. Era um momento só dela, e ela não saberia o que fazer com esses momentos. Acostumara-se a viver com o marido, a usar os perfumes que ele escolhera, a dançar valsas sem sentido durante os jantares, a vestir um colar de pérolas. Com o marido já adormecido ao lado dela, Amanda retirou o colar e pôs sobre a mesa.
Ficou parada por um longo tempo olhando estaticamente a janela do quarto do navio. Era tudo azul, era tudo ondas. A sensação era boa e libertadora, de estar bem longe da terra, de sentir-se no meio da água. Sentiu-se aliviada, por um momento. Ficou olhando a janela e quase pôde ver passar por ela as mais diversas cores, peixes, e até mesmo pensou ter visto traços de um rosto delineados pela água. Assustou-se, então, pensando estar alucinando. Passado esse momento, enxergou tudo azul novamente. A janela constituía um círculo perfeito azul no meio do quarto. De repente, começou a enxergar na água algo parecido com um redemoinho, ou um vento, ou alguma força que parecia querer puxá-la dali. Sentiu uma vontade enorme de quebrar bruscamente o vidro da janela e entrar no meio daquele universo oceânico que enxergava agora. Era um universo distante e totalmente distinto do mundo real, parecia um delírio. Ela sabia, no entanto, que a água era real. Esse oceano é de verdade. Talvez o que estivesse enxergando ali não fosse, ou ainda fossem as projeções de sua mente naquele fundo azul. Esse tipo de delírio ela jamais enxergaria longe dali. A janela abrira as portas de sensações perdidas e escondidas dentro dela. Ali, não haveria repressão. Continuou olhando a água, incapaz de realizar nenhum movimento. Teve certeza de que algo estava acontecendo ali. Subitamente, enxergou então a si mesma, do outro lado da janela, submersa no meio do oceano. Aquela que estava do lado seco da janela espantou-se, mas não sentiu medo. A que estava flutuante nas profundezas do mar nem fazia esforço para nadar, parecia estar caindo livremente pelo espaço. Ela estava isenta de qualquer dor ou receio desse mundo real, ela sentia-se longe de qualquer memória ou situação pela qual já tivesse passado. Estava rumando a algum lugar bem fundo, e sentia-se imensa, enquanto o resto do mundo lá em cima era apenas resquícios da luz do sol refletindo pela água.

Acordou com luzes e barulhos vindos do lado de fora da cabine. Fábio ainda dormia. Lembrou-se vagamente de ter tido algum tipo de visão ou sonho na noite anterior. Não saberia dizer o que era real e o que era imaginação. Olhou a janela. Viu tudo azul, mas não viu mais nada. Fábio acordou.
- Meu amor, você teve um sono perturbado ontem. Ficava se mexendo a toda hora na cama. – e acariciou os cabelos da esposa afetivamente.
Amanda tentou resgatar alguma lembrança, no entanto a mente estava limpa, vazia. Parecia ter descansado, enfim. Sentiu calma e alívio como há muito tempo não sentia.
- Preciso de um café.
Fábio levantou-se e olhou a janela, pela qual passava rastros de luz. Puxou a corda da cortina, fechando-a.
- Como está claro aqui dentro. Ta certo então, vista-se e vamos para o café-da-manhã.
Amanda sentia uma vontade descontrolada de comer naquela manhã. Fábio parecia estranhar a gula da esposa, mas não disse nada.
As horas passaram depressa durante o dia. Já era de tarde quando ela ouviu algumas pessoas comentando no deque da piscina: é, hoje eles vão abrir para a gente mergulhar. Mergulhar?, pensou. Será que eles vão dar o colete para a gente entrar na água? Ah, mas eu não tenho coragem – ouviu uma moça comentar. Isso é coisa para gente doida, e se a água for fria, e se eu não souber nadar, a moça dizia.
- Vamos, Fábio? Vamos mergulhar?
Fábio mergulhou. Amanda estava inquieta, embora sentisse uma paz enorme. Já na água, sorriu para o marido enquanto vislumbrava o céu aberto. Ele sorriu de volta, abraçaram-se. Aquele abraço molhado e a pele roçando intensamente na sua fez com que ela percebesse uma energia há muito perdida. Não descreveria com nenhuma outra palavra, energia, é só o que era. Amanda fechou os olhos, dentro do abraço, e parou de ouvir todos os sons de fora. Nem o barulho das ondas, nem o que Fábio falava em seu ouvido, nem gaivotas. Amanda paralisou ali. Não pensou em mais nada, não viu nenhuma imagem. Viu passar pela mente como num flash rápido a memória que se encontrava esquecida dentro dela desde que a enxergara aquela noite na janela do navio.
- Fábio...
Ele sentiu algo de estranho em sua voz.
- O que é, Amanda?
Ela se soltou de seus braços, olhou para baixo. Lá embaixo, lá embaixo o mundo era outro, da janela do navio o mundo era outro.
- Me afogue.
Isso mesmo, agora. Estou pedindo desesperadamente que você me afogue! Aqui, nessa água. Quero ir fundo, bem fundo. Foi uma idéia impensada que tive agora, mas sinto que tem algo me chamando lá no fundo. Só irei saber se for lá.
Fechou os olhos e pôde sentir a sensação de estar se perdendo da vida, e só afundar até que a respiração cessasse, que o corpo cansasse; de estar se distanciando da superfície, indo em direção a algo bem profundo no meio do mundo. Antes que pudesse perceber, já teria ido, quase que como num sonho, um delírio lindo de libertação do qual não teria de acordar. Naquele momento, só o que precisava era sentir a água.

Um comentário:

  1. Esse conto aqui, de Marcella, surpreende tanto pelo estilo, quanto pelo conteúdo.

    E você fica mais surpreso ainda quando descobre que ela tem 19 anos e que é uma gata (com todo o respeito)!

    Marcella vai longe... tenho a impressão de que vamos ouvir falar muito dela ainda...

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