Eu sou tanta dor junta, com algumas alegrias escondidas, medos que se originam a todo momento e um querer-ser de infância, de outros universos para conhecer, de vida inatingível. Medo de monstros que não se escondem no armário, de fantasias que não sei por que fazem parte de mim, e um medo muito maior de morrer com tudo isso para dentro. Que não consiga tornar externa essa ânsia, essa correria interna, essa coisa pulsante dentro de mim. Que não concretize nada, que morra com todas essas idéias vagas sem ter visto no lado de fora tudo isso o que eu vejo a toda hora no lado de dentro.
Um querer-colher do outro o que puder para ser meu. Um querer-tornar palpável o vazio, e admirável o que é o feio. E, sem as dores, e sem o medo, ser então liberta dessa rotina e de todos esses limites mundanos. Vôo, sem hesitar, para o infinito se alguém me apresentar a ele. E espero, então espero, com um toque de desespero e uma transparência de calma, por essa pessoa que irá me levar até lá. Até lá, bem lá, bem longe – até onde?
Decidi que ainda há tempo e, sendo cedo e não tarde, posso guardar a vida que inexiste em mim sem tanto sofrer. Essa vida deveria estar aqui, já era para ter se mostrado, nem que fosse uma mínima aparição sorrateira, e não veio. Nada veio, só a ânsia continua. Só o desespero se instaurou aqui. Eu era para estar vivendo agora, a vida não veio. Mas, sendo cedo, havendo o tempo, ainda, deixarei de lado o meu presente equivocado, fingirei não enxergar que a ordem desses acontecimentos está tão brutalmente errada, e continuarei vivendo no futuro – ah, o futuro, um futuro lindo e incerto que me aguarda.
Nessa dimensão repleta de possibilidades que chamamos de futuro, eu vejo tudo como na estrutura de sonho, ou delírio, uma coisa sem cores concretas, só borros indistinguíveis. Mas é tudo tão bonito. Não há cores, mas há a claridade. Eu sei que tem sol, em um céu de algum lugar que desconheço, e sinto que há movimento, e dentro desse movimento algum sentido – e não é isso que chamamos de vida? Com a claridade, a clareza das idéias. Se tudo é tortuoso e as idéias não se constroem no presente, no futuro há o sentido. Algum sentido, qualquer sentido, uma seta que aponta para lá, até lá, bem longe – o infinito?
Na solidão não há beleza, embora nela resida uma riqueza imensa. No entanto, a beleza não, ela está é nas horas construídas com algum intuito. Aquelas palavras que são ditas carregadas de alívio e que fazem latejar alguma coisa dentro de nós. Aquilo que precisa sair, em forma de sentimento exposto, abrindo o caminho para as feridas, sim, e uma nova ardência que virá a incomodar a cada hora de cada dia. Mas é melhor que saia, é preciso aliviar, é preciso dizer. Na solidão, nada disso é possível. Essa troca, esses olhares – que se toquem ou não os olhos, e que se toquem ou não as mãos, os corpos e mais do que tudo as almas, é o momento construído aquele que iremos recordar mais tarde. Na solidão, horas vazias e sem sentido. E que ajudam a modelar aquele sentir que há por dentro, e que direcionam a mente para algum ponto específico, sim, é tudo isso nas horas sozinhas. A reflexão profunda e a imersão para dentro desse sentir ardente, somente nos momentos sem ninguém. Só o eu puro, cru, bruto ali. O eu sem personagens. O eu que não precisa fingir para ninguém, aparecer nem demonstrar nada, pois está tão terrivelmente só que quase não se enxerga. É esse eu, esse eu que ninguém vê, é esse eu o que realmente somos. Ainda assim, a beleza não está ali, porque tudo isso é melancólico, é desesperador demais, é intenso demais esse ser-só que ele não se fecha em si e está sempre em busca de um viver maior com algum outro que virá a conhecer. Ou talvez não venha a conhecer.
Mas o meu eu bruto, esse meu eu sem artifícios, sem enfeites e sem beleza me incomoda demais. Acho que recebi uma maldição, a de sentir demais. A de querer ser demais. E então fico, aqui, parada, no nada, contemplando o meu vazio e a crueza dessas horas solitárias. Mergulho para dentro de mim. Encontro muito, ao mesmo tempo não encontro nada. A minha intuição diz a todos os segundos que eu deveria estar vivendo mais. Enquanto caminho pela cidade, e vejo todas essas pessoas me olhando, elas encaram o meu eu-personagem como se o conhecessem tão bem. E eu olho para elas, tão profundamente, como se as visse tão bem também. Um dia, levarei o meu eu-cru para passear, o meu eu sozinho para conhecer o lado de fora, e então sim ele descobrirá essa vida que lhe falta.
O que sinto é um desejo sem objeto. Um sentimento direcionado a ninguém. Um nada no nada. O que sinto é que as horas corroem o meu corpo e destroçam o meu interior. Nunca quis um corpo, não precisaria de um. Queria algum tipo de essência sem residência, em algum universo inventado em que nada tivesse de ser concreto. E, mais do que tudo, algum foco para depositar tudo isso que existe em mim. Só assim poderia ter a certeza de que essas idéias não morreriam aqui, para dentro, sozinhas. Tão isoladas, tão deixadas de lado pela esfera do real, que um dia vão se esvair e tampouco irei perceber. Alguém irá notar – certamente alguém há de notar – que eu estarei ficando mais esquisita, talvez inquieta e fora de mim, o que na verdade seria só a visão externa de um vazio fundo fundo fundo, da falta daquela parte essencial que perdi. E se não sair, e se esse meu sentir nunca conhecer o mundo real? Poderá vir a loucura, ou será o desespero? Ou enfim a conformidade de que é essa a única realidade que um dia conhecerei e fim. Sou esse eu: o das paisagens que enxergo nos sonhos, de situações que imagino, de pessoas que nunca virei a conhecer, porém que penso nelas tanto, tanto mas tanto que vieram a fazer parte de mim.
Sim, é isso, só isso, um monte de representações e as sensações que permanecem presas do lado de dentro. Não, não há ninguém, não há vida, só o que há é o que sinto, e continuo a sentir enquanto as luzes não param do lado de fora, e algo que me chama por detrás desse horizonte que enxergo, algo que pede por ser descoberto ali – mas o que?
Permaneço muda, sentindo o vento bater pela janela fechada. Se abrir a janela, será uma porta de contato com o mundo de fora. Agora sei, depois de muito sentir toda essa pulsação incapaz de expressá-la, que não preciso de nada de fora. Eu preciso é das horas solitárias, do eu cru, do eu que não é personagem. E então, eu descobri que não há ninguém, de fato não há mais nada nesse mundo. Só o que há é o presente atroz, e que ele é o agora e nada mais. Não é o futuro, não é beleza, não é nada. No meio desse vazio, descobri o que há. Há a escrita. E o meu vôo para o infinito está aqui, nessas folhas e nessas palavras, levando pedaços de mim livres de tempo ou espaço.
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