sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Estação de trem.

Segunda-feira, 18 de maio de 1995, estação de trem.

Multidões por todos os lados. Vidas que se dispersam, seguindo os mais diversos rumos os quais eu nunca iria saber. Alguns corriam, outros abraçavam, outros buscavam em seus pertences alguma distração. Alguns tinham pressa. Eu não tinha. Enxerguei bolsas, chapéus, malas e todos os tipos de pessoas. A única vida que me interessava não estava ali. E o som de todo o movimento iria se contrapor a todo o silêncio e ausência que estariam por vir.


























Segunda-feira, 25 de maio de 1995, estação de trem.

Mais uma noite hostil no gélido vão da estação de trem. O frio congelava as mãos, incapazes de buscar calor em quaisquer outras. Não congelaria as memórias, no entanto. Essas permaneceriam intactas, até que pudesse agregar-se algo mais a elas. Repassaria todas as lembranças naquele momento, como se estivesse buscando alguma resposta. A resposta, contudo, não era fácil. Não estava ali. Nem nas minhas queridas e já gastas lembranças, nem naquela estação. Nada estaria ali. A espera seria longa, talvez, eu sabia.
Procurei seu rosto em meio a tantos outros que não paravam de chegar. A cada som de passos que se aproximavam da porta de abertura do trem, uma expectativa. Não sei exatamente como seria sua fisionomia agora. Mas eu reconheceria, tenho certeza, por mais diferente que estivesse.
A imagem que tenho em minha mente agora é tão palpável que quase acredito que iria te ver ali, entre um e outro estranho nesse aglomerado de pessoas com pressa. Nós nunca tivemos pressa. Quase posso ver você chegar, carregando os olhos cansados, e trazendo nos ombros toda a vida que você viveu até agora sem mim. Contudo, quando estivesse perto, nada disso importaria mais. Você iria me dizer aquelas palavras que tanto lhe eram características, sobre a vida ser curta e escorregar pelas nossas mãos antes que sequer pudéssemos ver. E você iria rir, e eu consigo ver como se fosse de verdade, você me olhando nos olhos e dizendo que são os momentos como esse que fazem valer a pena toda a mediocridade e falta de sentido da vida humana. E é por isso que eu estou aqui, agora, sentindo as pernas tremerem – não sei se do frio ou de ansiedade – olhando para toda essa gente que não sei o nome sem ver você.










Quarta-feira, 7 de agosto de 1993, quarto de hotel.

- Se você pudesse estar em qualquer lugar agora, qualquer um, onde gostaria de estar? – perguntei, debruçada em seu peito, debaixo das cobertas que nos cobriam até a cabeça.
- Qualquer lugar?
- Isso, qualquer lugar.
Ele mirou o teto por um tempo, com o olhar pensador que se fazia presente em todos os momentos que eu jamais desejaria esquecer.
- Eu diria... Naquela ilha do Pacífico que visitei há uns anos atrás.
Respirou fundo, com ar de nostalgia.
- Era um pedaço de paraíso completamente inabitado, vazio, a representação da própria solidão. Ainda assim, um dos lugares mais bonitos que já vi... A sensação de estar só em volta daquele oceano enorme e sem fim era como ser a única pessoa do mundo. Nunca vou me esquecer...
Olhei nos olhos divagantes que pareciam ter se transportado para a ilha.
- Você quer dizer que, de todos os lugares do mundo, você escolheria estar em um que te remete à solidão profunda e total?
- É, isso mesmo... Ah, Bri, você me conhece. Sabe que essa coisa de levar vidinha de gente na cidade não é comigo.
- Sim. Isso é tão clássico de você.
Ele afastou as cobertas para acender um cigarro. O cheiro do Camel e o gosto de cinza apagada em sua boca não me incomodariam mais.
- E você? – falou, em meio a uma tragada – Que lugar escolheria para estar?
Aconcheguei-me em seu ombro por cima dos cobertores e olhei para a janela aberta do hotel. O dia era de sol, o céu e os prédios que podia enxergar dali constituíam uma imagem colorida. Atravessando essa imagem de um universo em que, para mim, tudo era vívido e claro, veio a fumaça do cigarro dele. O espectro branco dançou no ar, depois se foi.
- Aqui, agora. Com você.





Segunda-feira, 1 de junho de 1995, estação de trem.

Vesti as luvas vermelhas que você tanto gostava. Você sabe que nessa temperatura não há o que me mantenha aquecida além de uns braços quentes. Talvez um dia volte a senti-los. Não seria hoje, no entanto. Estou aqui há mais de três horas e a estação já está vazia, quem estava aqui já foi – afinal, as pessoas sempre vão. O mundo também vai, como se quisesse ser esquecido. Tenho certeza que há histórias que querem ser esquecidas, mas sem elas só restaria o vazio. E o vazio corrói demais, consegue arder mais do que todas essas horas sozinhas e geladas numa estação escura onde não corre mais ninguém, tampouco você.
























Segunda-feira, 7 de junho de 1995, estação de trem.

A sensação de estar só em meio a essa estação vazia é como ser a única pessoa do mundo. Agora eu entendo como você se sentiu naquela ilha do Pacífico. Só não compreendo o porquê de querer sentir-se assim. Você precisava fugir dessa vida urbana mesquinha. Pena que acabou fugindo de mim igualmente.




























Sábado, 19 de fevereiro de 1994, estrada.

- Abra a janela, Bri, você precisa sentir esse vento.
Suas esquisitices talvez um dia viriam a me causar impaciência. Naquele momento, não causariam, jamais. Abri a janela. O ar era doce, carregado. A estrada pela qual passávamos era verde e cheia de vida, mas num meio de nada. Ninguém saberia dizer que lugar era aquele.
- Até quando vai continuar me chamando de Bri, hein?
Ele riu e me olhou, enquanto dirigia.
- Até quando você continuar me lembrando a Brigitte Bardot.
Aquilo era o ritmo perfeito da vida, a sensação de todos os pequenos fragmentos no lugar exato em que deveriam estar. Contudo, eram frágeis. O mais leve vento poderia causar a destruição.
- Pega o mapa, meu bem, veja onde nós estamos. Acho que deve estar perto.
- Não vai me dizer aonde você está me levando, mesmo? Estou morrendo de curiosidade. – eu disse.
- Não, é surpresa. Não insista.

Não era amor, não era paixão, não era loucura. Era tudo isso junto e mais todas as possibilidades de uma vida que, pela primeira vez, não parecia superficial e que fazia ansiar pelo futuro. Não haveria outra pessoa que me faria sentir desse jeito.
Ele compreendia o todo – todas as essências de mim, sem deixar passar pedaços. Mas, ainda assim, eu sempre soube que ele não queria essa vida. Não iria viver comigo para o resto dos dias, não iria dizer que me ama, não iríamos construir uma vida juntos, jamais uma família. Ele queria o vento das montanhas. Ele queria uma realidade que, bem no fundo, eu sempre soube que não existe, no entanto nunca tive a coragem de dizer. Ele queria ser livre, queria conhecer todas as facetas do mundo, queria provar não sei bem para quem – imagino que para si próprio – que a vida não tem de ser essa sucessão de fatos bestas aos quais as pessoas se aprisionam. Mas, meu amor, ninguém é livre. Lamento por não ter sido forte o suficiente para dizer, para contestar. As pessoas não são independentes, e só porque você acredita que pode fugir, não significa que conseguirá se distanciar da sociedade. A vida é sobre criar vínculos. O que faz você querer acordar todos os dias e ter forças para levantar é aquilo que você internalizou do passado e que, hoje, virou parte de você. Você não quis internalizar nada. Você esqueceria desse momento com a mesma facilidade com que deixaria a tudo sem hesitar, se sentisse que esses ares estavam começando a te sufocar. E eu continuaria aqui. Não consigo deixar de pensar – seria eu o ar que te sufocou?































Segunda-feira, 19 de julho de 1995, estação de trem.

Talvez, eu nem espere verdadeiramente que você venha. Vou confessar: no primeiro dia em que vim aqui, tinha esperanças. Agora, já não sei mais. Só o que sei é que essas lágrimas frias não param de escorrer enquanto espero por você nesse lugar. E me fere, uma facada a cada pessoa que sai do trem que não seja você. Mas é isso o que me dá forças para passar por todas as vinte e quatro horas dos outros seis dias da semana – esse momento, aqui, e uma possibilidade, mesmo que indefinida e distante, de que sejam os seus sapatos marrons a descer do trem, com um olhar de espanto ao me ver estática te esperando do outro lado das grades, com o sorriso que tenho certeza que estaria no meu rosto no mesmo instante.























Terça-feira, 5 de janeiro de 1995, cafeteria.

Café sem gosto. Preferiria o gosto do seu cigarro amargo em minha boca. Preferiria estar em qualquer outro lugar do que condenada a essa realidade assustadora sem você. O garçom desse lugar deve sentir pena de mim. Fico buscando o gosto de ti em todos os cafés e cigarros, sem sucesso.
Procuro incessantemente por algum perfume que me remeta ao teu cheiro, que inexiste em qualquer outro lugar desse mundo além de um corpo que está bem longe daqui agora. Preciso, desesperadamente, acordar a parte de você que morreu em algum lugar em mim.
























Segunda-feira, 23 de outubro de 1995, estação de trem.

Não faz mais frio. Não obstante, por mais estranho que isso seja, continuo a senti-lo. Essa estação sempre será gelada e escura, mesmo quando for quente e fizer sol. Você não veio, assim como não veio em nenhuma das outras segundas-feiras do ano as quais passei, incondicionalmente, atrás desse portão aguardando todas as pessoas descerem do trem.



























Segunda-feira, 12 de janeiro de 1996, estação de trem.

Eu não sei onde você está. Não sei, também, por que motivo continuo a vir nesse lugar. Sei que você não irá chegar. Já me acostumei com a idéia de ter te perdido. Se ao menos pudesse saber se está vivo ou morto, teria maiores forças para continuar.
Não sei como cheguei até aqui e consegui sobreviver – acordar e dormir – durante todos esses dias tristes e sem vida esperando por mais uma segunda-feira por vir.
Entretanto, não há um dia em que não pense em ti. Me pergunto onde você estaria, e se a vida foi tão cruel com você quanto está sendo comigo.

























Segunda-feira, 23 de maio de 1994, estação de trem.

- Ah, Bri! Também vou sentir sua falta... Mas você sabe, eu preciso disso. Trarei um pedacinho da neve para você. Volto na segunda-feira, daqui a um ano, me faça uma surpresa. (...) Não, não vou ligar. Nos encontraremos, aqui, nessa estação de trem.



(25/6/2010 - tenho quase um caso de amor com esse conto.)

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

descobri

que, na verdade, eu não anseio por sucesso, reconhecimento, não quero ser lida, não quero nada.
eu quero escrever
na minha solidão e silêncio que tanto me confortam.