sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Estação de trem.

Segunda-feira, 18 de maio de 1995, estação de trem.

Multidões por todos os lados. Vidas que se dispersam, seguindo os mais diversos rumos os quais eu nunca iria saber. Alguns corriam, outros abraçavam, outros buscavam em seus pertences alguma distração. Alguns tinham pressa. Eu não tinha. Enxerguei bolsas, chapéus, malas e todos os tipos de pessoas. A única vida que me interessava não estava ali. E o som de todo o movimento iria se contrapor a todo o silêncio e ausência que estariam por vir.


























Segunda-feira, 25 de maio de 1995, estação de trem.

Mais uma noite hostil no gélido vão da estação de trem. O frio congelava as mãos, incapazes de buscar calor em quaisquer outras. Não congelaria as memórias, no entanto. Essas permaneceriam intactas, até que pudesse agregar-se algo mais a elas. Repassaria todas as lembranças naquele momento, como se estivesse buscando alguma resposta. A resposta, contudo, não era fácil. Não estava ali. Nem nas minhas queridas e já gastas lembranças, nem naquela estação. Nada estaria ali. A espera seria longa, talvez, eu sabia.
Procurei seu rosto em meio a tantos outros que não paravam de chegar. A cada som de passos que se aproximavam da porta de abertura do trem, uma expectativa. Não sei exatamente como seria sua fisionomia agora. Mas eu reconheceria, tenho certeza, por mais diferente que estivesse.
A imagem que tenho em minha mente agora é tão palpável que quase acredito que iria te ver ali, entre um e outro estranho nesse aglomerado de pessoas com pressa. Nós nunca tivemos pressa. Quase posso ver você chegar, carregando os olhos cansados, e trazendo nos ombros toda a vida que você viveu até agora sem mim. Contudo, quando estivesse perto, nada disso importaria mais. Você iria me dizer aquelas palavras que tanto lhe eram características, sobre a vida ser curta e escorregar pelas nossas mãos antes que sequer pudéssemos ver. E você iria rir, e eu consigo ver como se fosse de verdade, você me olhando nos olhos e dizendo que são os momentos como esse que fazem valer a pena toda a mediocridade e falta de sentido da vida humana. E é por isso que eu estou aqui, agora, sentindo as pernas tremerem – não sei se do frio ou de ansiedade – olhando para toda essa gente que não sei o nome sem ver você.










Quarta-feira, 7 de agosto de 1993, quarto de hotel.

- Se você pudesse estar em qualquer lugar agora, qualquer um, onde gostaria de estar? – perguntei, debruçada em seu peito, debaixo das cobertas que nos cobriam até a cabeça.
- Qualquer lugar?
- Isso, qualquer lugar.
Ele mirou o teto por um tempo, com o olhar pensador que se fazia presente em todos os momentos que eu jamais desejaria esquecer.
- Eu diria... Naquela ilha do Pacífico que visitei há uns anos atrás.
Respirou fundo, com ar de nostalgia.
- Era um pedaço de paraíso completamente inabitado, vazio, a representação da própria solidão. Ainda assim, um dos lugares mais bonitos que já vi... A sensação de estar só em volta daquele oceano enorme e sem fim era como ser a única pessoa do mundo. Nunca vou me esquecer...
Olhei nos olhos divagantes que pareciam ter se transportado para a ilha.
- Você quer dizer que, de todos os lugares do mundo, você escolheria estar em um que te remete à solidão profunda e total?
- É, isso mesmo... Ah, Bri, você me conhece. Sabe que essa coisa de levar vidinha de gente na cidade não é comigo.
- Sim. Isso é tão clássico de você.
Ele afastou as cobertas para acender um cigarro. O cheiro do Camel e o gosto de cinza apagada em sua boca não me incomodariam mais.
- E você? – falou, em meio a uma tragada – Que lugar escolheria para estar?
Aconcheguei-me em seu ombro por cima dos cobertores e olhei para a janela aberta do hotel. O dia era de sol, o céu e os prédios que podia enxergar dali constituíam uma imagem colorida. Atravessando essa imagem de um universo em que, para mim, tudo era vívido e claro, veio a fumaça do cigarro dele. O espectro branco dançou no ar, depois se foi.
- Aqui, agora. Com você.





Segunda-feira, 1 de junho de 1995, estação de trem.

Vesti as luvas vermelhas que você tanto gostava. Você sabe que nessa temperatura não há o que me mantenha aquecida além de uns braços quentes. Talvez um dia volte a senti-los. Não seria hoje, no entanto. Estou aqui há mais de três horas e a estação já está vazia, quem estava aqui já foi – afinal, as pessoas sempre vão. O mundo também vai, como se quisesse ser esquecido. Tenho certeza que há histórias que querem ser esquecidas, mas sem elas só restaria o vazio. E o vazio corrói demais, consegue arder mais do que todas essas horas sozinhas e geladas numa estação escura onde não corre mais ninguém, tampouco você.
























Segunda-feira, 7 de junho de 1995, estação de trem.

A sensação de estar só em meio a essa estação vazia é como ser a única pessoa do mundo. Agora eu entendo como você se sentiu naquela ilha do Pacífico. Só não compreendo o porquê de querer sentir-se assim. Você precisava fugir dessa vida urbana mesquinha. Pena que acabou fugindo de mim igualmente.




























Sábado, 19 de fevereiro de 1994, estrada.

- Abra a janela, Bri, você precisa sentir esse vento.
Suas esquisitices talvez um dia viriam a me causar impaciência. Naquele momento, não causariam, jamais. Abri a janela. O ar era doce, carregado. A estrada pela qual passávamos era verde e cheia de vida, mas num meio de nada. Ninguém saberia dizer que lugar era aquele.
- Até quando vai continuar me chamando de Bri, hein?
Ele riu e me olhou, enquanto dirigia.
- Até quando você continuar me lembrando a Brigitte Bardot.
Aquilo era o ritmo perfeito da vida, a sensação de todos os pequenos fragmentos no lugar exato em que deveriam estar. Contudo, eram frágeis. O mais leve vento poderia causar a destruição.
- Pega o mapa, meu bem, veja onde nós estamos. Acho que deve estar perto.
- Não vai me dizer aonde você está me levando, mesmo? Estou morrendo de curiosidade. – eu disse.
- Não, é surpresa. Não insista.

Não era amor, não era paixão, não era loucura. Era tudo isso junto e mais todas as possibilidades de uma vida que, pela primeira vez, não parecia superficial e que fazia ansiar pelo futuro. Não haveria outra pessoa que me faria sentir desse jeito.
Ele compreendia o todo – todas as essências de mim, sem deixar passar pedaços. Mas, ainda assim, eu sempre soube que ele não queria essa vida. Não iria viver comigo para o resto dos dias, não iria dizer que me ama, não iríamos construir uma vida juntos, jamais uma família. Ele queria o vento das montanhas. Ele queria uma realidade que, bem no fundo, eu sempre soube que não existe, no entanto nunca tive a coragem de dizer. Ele queria ser livre, queria conhecer todas as facetas do mundo, queria provar não sei bem para quem – imagino que para si próprio – que a vida não tem de ser essa sucessão de fatos bestas aos quais as pessoas se aprisionam. Mas, meu amor, ninguém é livre. Lamento por não ter sido forte o suficiente para dizer, para contestar. As pessoas não são independentes, e só porque você acredita que pode fugir, não significa que conseguirá se distanciar da sociedade. A vida é sobre criar vínculos. O que faz você querer acordar todos os dias e ter forças para levantar é aquilo que você internalizou do passado e que, hoje, virou parte de você. Você não quis internalizar nada. Você esqueceria desse momento com a mesma facilidade com que deixaria a tudo sem hesitar, se sentisse que esses ares estavam começando a te sufocar. E eu continuaria aqui. Não consigo deixar de pensar – seria eu o ar que te sufocou?































Segunda-feira, 19 de julho de 1995, estação de trem.

Talvez, eu nem espere verdadeiramente que você venha. Vou confessar: no primeiro dia em que vim aqui, tinha esperanças. Agora, já não sei mais. Só o que sei é que essas lágrimas frias não param de escorrer enquanto espero por você nesse lugar. E me fere, uma facada a cada pessoa que sai do trem que não seja você. Mas é isso o que me dá forças para passar por todas as vinte e quatro horas dos outros seis dias da semana – esse momento, aqui, e uma possibilidade, mesmo que indefinida e distante, de que sejam os seus sapatos marrons a descer do trem, com um olhar de espanto ao me ver estática te esperando do outro lado das grades, com o sorriso que tenho certeza que estaria no meu rosto no mesmo instante.























Terça-feira, 5 de janeiro de 1995, cafeteria.

Café sem gosto. Preferiria o gosto do seu cigarro amargo em minha boca. Preferiria estar em qualquer outro lugar do que condenada a essa realidade assustadora sem você. O garçom desse lugar deve sentir pena de mim. Fico buscando o gosto de ti em todos os cafés e cigarros, sem sucesso.
Procuro incessantemente por algum perfume que me remeta ao teu cheiro, que inexiste em qualquer outro lugar desse mundo além de um corpo que está bem longe daqui agora. Preciso, desesperadamente, acordar a parte de você que morreu em algum lugar em mim.
























Segunda-feira, 23 de outubro de 1995, estação de trem.

Não faz mais frio. Não obstante, por mais estranho que isso seja, continuo a senti-lo. Essa estação sempre será gelada e escura, mesmo quando for quente e fizer sol. Você não veio, assim como não veio em nenhuma das outras segundas-feiras do ano as quais passei, incondicionalmente, atrás desse portão aguardando todas as pessoas descerem do trem.



























Segunda-feira, 12 de janeiro de 1996, estação de trem.

Eu não sei onde você está. Não sei, também, por que motivo continuo a vir nesse lugar. Sei que você não irá chegar. Já me acostumei com a idéia de ter te perdido. Se ao menos pudesse saber se está vivo ou morto, teria maiores forças para continuar.
Não sei como cheguei até aqui e consegui sobreviver – acordar e dormir – durante todos esses dias tristes e sem vida esperando por mais uma segunda-feira por vir.
Entretanto, não há um dia em que não pense em ti. Me pergunto onde você estaria, e se a vida foi tão cruel com você quanto está sendo comigo.

























Segunda-feira, 23 de maio de 1994, estação de trem.

- Ah, Bri! Também vou sentir sua falta... Mas você sabe, eu preciso disso. Trarei um pedacinho da neve para você. Volto na segunda-feira, daqui a um ano, me faça uma surpresa. (...) Não, não vou ligar. Nos encontraremos, aqui, nessa estação de trem.



(25/6/2010 - tenho quase um caso de amor com esse conto.)

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

descobri

que, na verdade, eu não anseio por sucesso, reconhecimento, não quero ser lida, não quero nada.
eu quero escrever
na minha solidão e silêncio que tanto me confortam.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

isso nunca vai dar certo

sabe por quê?
porque sou obsessivo-compulsiva e arrumo 300 vezes o texto depois que escrevo. é sério. se eu postar em qualquer lugar, teria que ficar atualizando a cada uma das mil modificações que eu faço. então, pois é. continuo no recanto das letras porque gosto imensamente das pessoas de lá.

Vôo para o infinito.

Eu sou tanta dor junta, com algumas alegrias escondidas, medos que se originam a todo momento e um querer-ser de infância, de outros universos para conhecer, de vida inatingível. Medo de monstros que não se escondem no armário, de fantasias que não sei por que fazem parte de mim, e um medo muito maior de morrer com tudo isso para dentro. Que não consiga tornar externa essa ânsia, essa correria interna, essa coisa pulsante dentro de mim. Que não concretize nada, que morra com todas essas idéias vagas sem ter visto no lado de fora tudo isso o que eu vejo a toda hora no lado de dentro.
Um querer-colher do outro o que puder para ser meu. Um querer-tornar palpável o vazio, e admirável o que é o feio. E, sem as dores, e sem o medo, ser então liberta dessa rotina e de todos esses limites mundanos. Vôo, sem hesitar, para o infinito se alguém me apresentar a ele. E espero, então espero, com um toque de desespero e uma transparência de calma, por essa pessoa que irá me levar até lá. Até lá, bem lá, bem longe – até onde?
Decidi que ainda há tempo e, sendo cedo e não tarde, posso guardar a vida que inexiste em mim sem tanto sofrer. Essa vida deveria estar aqui, já era para ter se mostrado, nem que fosse uma mínima aparição sorrateira, e não veio. Nada veio, só a ânsia continua. Só o desespero se instaurou aqui. Eu era para estar vivendo agora, a vida não veio. Mas, sendo cedo, havendo o tempo, ainda, deixarei de lado o meu presente equivocado, fingirei não enxergar que a ordem desses acontecimentos está tão brutalmente errada, e continuarei vivendo no futuro – ah, o futuro, um futuro lindo e incerto que me aguarda.
Nessa dimensão repleta de possibilidades que chamamos de futuro, eu vejo tudo como na estrutura de sonho, ou delírio, uma coisa sem cores concretas, só borros indistinguíveis. Mas é tudo tão bonito. Não há cores, mas há a claridade. Eu sei que tem sol, em um céu de algum lugar que desconheço, e sinto que há movimento, e dentro desse movimento algum sentido – e não é isso que chamamos de vida? Com a claridade, a clareza das idéias. Se tudo é tortuoso e as idéias não se constroem no presente, no futuro há o sentido. Algum sentido, qualquer sentido, uma seta que aponta para lá, até lá, bem longe – o infinito?
Na solidão não há beleza, embora nela resida uma riqueza imensa. No entanto, a beleza não, ela está é nas horas construídas com algum intuito. Aquelas palavras que são ditas carregadas de alívio e que fazem latejar alguma coisa dentro de nós. Aquilo que precisa sair, em forma de sentimento exposto, abrindo o caminho para as feridas, sim, e uma nova ardência que virá a incomodar a cada hora de cada dia. Mas é melhor que saia, é preciso aliviar, é preciso dizer. Na solidão, nada disso é possível. Essa troca, esses olhares – que se toquem ou não os olhos, e que se toquem ou não as mãos, os corpos e mais do que tudo as almas, é o momento construído aquele que iremos recordar mais tarde. Na solidão, horas vazias e sem sentido. E que ajudam a modelar aquele sentir que há por dentro, e que direcionam a mente para algum ponto específico, sim, é tudo isso nas horas sozinhas. A reflexão profunda e a imersão para dentro desse sentir ardente, somente nos momentos sem ninguém. Só o eu puro, cru, bruto ali. O eu sem personagens. O eu que não precisa fingir para ninguém, aparecer nem demonstrar nada, pois está tão terrivelmente só que quase não se enxerga. É esse eu, esse eu que ninguém vê, é esse eu o que realmente somos. Ainda assim, a beleza não está ali, porque tudo isso é melancólico, é desesperador demais, é intenso demais esse ser-só que ele não se fecha em si e está sempre em busca de um viver maior com algum outro que virá a conhecer. Ou talvez não venha a conhecer.
Mas o meu eu bruto, esse meu eu sem artifícios, sem enfeites e sem beleza me incomoda demais. Acho que recebi uma maldição, a de sentir demais. A de querer ser demais. E então fico, aqui, parada, no nada, contemplando o meu vazio e a crueza dessas horas solitárias. Mergulho para dentro de mim. Encontro muito, ao mesmo tempo não encontro nada. A minha intuição diz a todos os segundos que eu deveria estar vivendo mais. Enquanto caminho pela cidade, e vejo todas essas pessoas me olhando, elas encaram o meu eu-personagem como se o conhecessem tão bem. E eu olho para elas, tão profundamente, como se as visse tão bem também. Um dia, levarei o meu eu-cru para passear, o meu eu sozinho para conhecer o lado de fora, e então sim ele descobrirá essa vida que lhe falta.
O que sinto é um desejo sem objeto. Um sentimento direcionado a ninguém. Um nada no nada. O que sinto é que as horas corroem o meu corpo e destroçam o meu interior. Nunca quis um corpo, não precisaria de um. Queria algum tipo de essência sem residência, em algum universo inventado em que nada tivesse de ser concreto. E, mais do que tudo, algum foco para depositar tudo isso que existe em mim. Só assim poderia ter a certeza de que essas idéias não morreriam aqui, para dentro, sozinhas. Tão isoladas, tão deixadas de lado pela esfera do real, que um dia vão se esvair e tampouco irei perceber. Alguém irá notar – certamente alguém há de notar – que eu estarei ficando mais esquisita, talvez inquieta e fora de mim, o que na verdade seria só a visão externa de um vazio fundo fundo fundo, da falta daquela parte essencial que perdi. E se não sair, e se esse meu sentir nunca conhecer o mundo real? Poderá vir a loucura, ou será o desespero? Ou enfim a conformidade de que é essa a única realidade que um dia conhecerei e fim. Sou esse eu: o das paisagens que enxergo nos sonhos, de situações que imagino, de pessoas que nunca virei a conhecer, porém que penso nelas tanto, tanto mas tanto que vieram a fazer parte de mim.
Sim, é isso, só isso, um monte de representações e as sensações que permanecem presas do lado de dentro. Não, não há ninguém, não há vida, só o que há é o que sinto, e continuo a sentir enquanto as luzes não param do lado de fora, e algo que me chama por detrás desse horizonte que enxergo, algo que pede por ser descoberto ali – mas o que?
Permaneço muda, sentindo o vento bater pela janela fechada. Se abrir a janela, será uma porta de contato com o mundo de fora. Agora sei, depois de muito sentir toda essa pulsação incapaz de expressá-la, que não preciso de nada de fora. Eu preciso é das horas solitárias, do eu cru, do eu que não é personagem. E então, eu descobri que não há ninguém, de fato não há mais nada nesse mundo. Só o que há é o presente atroz, e que ele é o agora e nada mais. Não é o futuro, não é beleza, não é nada. No meio desse vazio, descobri o que há. Há a escrita. E o meu vôo para o infinito está aqui, nessas folhas e nessas palavras, levando pedaços de mim livres de tempo ou espaço.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Conchinhas coloridas

Ainda lembro daqueles dias que carregavam ares de verão, mesmo que não fosse verão, e do entusiasmo em cima de cada nova descoberta em nossas aventuras na praia. Aventuras, pai, porque é isso o que aqueles dias significavam para mim. Recordo de todas as conchinhas e do percurso incansável que realizávamos para catá-las, uma a uma, roubá-las da areia para que você, quando chegássemos em casa – numa casa que na época não abrigava a sobriedade e escuridão que, agora, estão lá de alguma forma – pusesse tudo em uma jarra que serviria para enfeitar a nossa sala. Mas antes alinharíamos uma a uma com cuidado e selecionaríamos as mais bonitas. Eu sempre tinha uma preferida, você também, e era sempre a mesma concha, a sua e a minha. Geralmente, seria uma colorida, com tons de rosa e laranja borrados no branco, que mais do que tudo lembravam o espaço borrado de cores em volta do sol no céu azul da praia. A jarra ficaria ali, e eu não cansaria de olhar para ela, admirando nossas aquisições do dia. E, então, eu iria te pedir, dia após dia, para que fôssemos à praia juntar conchinhas, quer fosse verão ou não.
A praia era nossa, minha e de meu pai, e nada mais me importava. Você saberia me responder o que quer que eu perguntasse sobre o mar, os peixes, o céu, as conchas. Hoje me pergunto se tudo o que você dizia às minhas insistentes e inumeráveis perguntas era correto ou se você jogava com a minha imaginação. Não importa, eu acreditaria, e você não me deixaria sem uma resposta.
Eu tinha menos de dez anos e você me levaria para caminhar na praia e brincar com o mundo, porque era essa a sensação de estar lá, juntando as conchas e tentando pegar os peixinhos pequenos e velozes da beira do mar, que eu nunca conseguiria. O verão nunca teria um fim para nós, e a nossa casa nunca seria triste como é agora, porque tínhamos a jarra coberta até o fim por conchinhas especiais e preferidas que nos lembrariam que, mesmo num dia de frio, as cores estavam ali.
Só me pergunto agora, pai, onde foram parar todos os meus sonhos de criança, que se perderam em algum lugar bem longe daqui. Algum lugar sem você, sem a nossa praia, sem verão ou conchinhas coloridas. Me pergunto em que momento o mundo deixou de ser o nosso parque de diversões e os dias uma aventura após a outra. O que aconteceu com aquela magia, pai? Sei que ela não pode ter desaparecido sozinha, nós devemos ter deixado que ela se fosse. Não sei em que momento exatamente eu simplesmente perdi todo o elo que nos juntava e aquela certeza de que eu jamais precisaria de outra pessoa na minha vida porque eu tinha você. E ter você significava ter a vida completa para mim, quando só ansiaria por um novo dia em que me levasse junto para fazer o que quer que você fosse fazer. Alguma coisa se perdeu ali, naquele céu de verão, e não sei bem dizer se ela morreu ali ou simplesmente foi desgastando-se com o tempo.
Quando a nossa sala de estar tornou-se escura, lembro-me de noites à mesa de jantar em que pude ver claramente que os dias na praia tornavam-se uma realidade distante. Continuo sem saber o que rompeu-se entre nós, mas eu soube instantaneamente pelo seu olhar cansado que você não era mais meu pai, ou não mais aquele que brincaria comigo e faria até a noite parecer cheia de vida. Jantaríamos em silêncio, porque você teria a voz gasta demais para falar comigo e eu não saberia como chegar até você sem a proximidade dos nossos momentos juntos. Depois, ainda jantaríamos em silêncio, mas porque não teríamos mais assunto para falar um com o outro. Vez ou outra, você falaria sobre o seu trabalho, e o quanto tem trabalhado demais, e perguntaria o que eu ando fazendo quando estou fora de casa. E eu já não era mais uma criança.
Se a jarra ainda continha as conchas ou se estaria vazia, eu não saberia. Na verdade, não sabia onde estaria a jarra. Em nenhum lugar dali, no entanto, algo me dizia. Esqueci da jarra, então, assim como esqueci de todo o futuro que eu havia planejado anos antes quando acreditava, ainda, que na vida tudo era possível. Enxergava viagens e passeios que faríamos, e uma casa cada vez mais enfeitada por lembranças em forma de pedaços de mundo que colheríamos. Nossa casa cheiraria a mar, à areia, e guardaria a imensidão de tudo o que há lá fora em um espaço tão pequeno, um espaço nosso. E acreditava que veria esse espaço se construir, que contaria cada passo que tomaríamos, e não pensei que um dia eu fosse crescer. Eu não vi, não vi nosso espaço se destruir, nem vi quando tão rápido nele deixaram de habitar as esperanças e os sonhos que você havia me ajudado a depositar ali, e não pode negar que teve sua parte nisso, embora tenha facilmente feito tudo dar lugar à seriedade e ao cansaço. Acho que eu te perdi para o cansaço, pai.
Entretanto, se você acha que fez com que as minhas fantasias pueris fossem embora, você se engana. Elas ainda estão ali. Elas ainda são o enfeite dos móveis da nossa sala, elas ainda estão presentes na mesa de jantar, nas conversas que nós deixamos de ter um com o outro, em algum espaço pertencente àquilo que quase deixou de existir. Não seria tão fácil assim. Não seria natural acordar para a vida no mesmo momento em que você decidiu que eu deveria, no mesmo instante em que você parou de construir comigo o que constituía o meu mundo. Eu ainda vejo tudo isso em algum lugar, pai. E eu sei que não perdi para sempre, não perdi esses resquícios de infância em mim, o que eu perdi, na verdade, foi você.
Nossa casa não cheiraria a mar, cheiraria a mofo. Cheiraria a coisa velha e deixada de lado, e as janelas estariam sempre fechadas, assim eu não mais enxergaria o mundo. O mundo tornara-se uma prisão, na qual eu não poderia desfrutar do tanto que sonhei, que sei que está em algum lugar, perdido entre o sofá em que me sento enquanto estática olho para o chão e o seu quarto, logo mais adiante no corredor, onde sei que você estaria.
Até que um dia você veio e me disse que o nosso quarto de hóspedes, sempre vazio, passaria a ser habitado. Mas, pai, somos só eu e você, sempre fomos só eu e você. Parece que isso não era mais suficiente para você. Era uma mulher, e era morena e tinha olheiras, e quando eu te perguntei o que ela estaria fazendo ali você me respondeu que ela estaria na nossa casa para cuidar de você, e cuidar de mim também. Não precisaria de ninguém para cuidar de mim, desejaria ter te dito isso antes.
Agora eu sei, existem as mais diversas facetas de dor. Há aquela que arde, que lateja em algum lugar bem dentro, tão dentro que se passa a sentir quase que todos os órgãos do corpo gritando, embora a dor não esteja neles. E tem aquela que não se pronuncia, que não exala as faíscas inquietantes – simplesmente permanece ali em forma de ausência. Não é somente o vazio, mas um vazio onde uma vez já esteve cheio. A dor da perda daquilo que já se teve um dia.
O silêncio e o escuro, as memórias confusas, a mistura das fantasias esquecidas com o mundo real brutal é só o que vejo. Mas até que parte daquelas memórias foram realmente esquecidas? Se eu pudesse saber, não precisaria preocupar-me em relembrar, em repassar na mente tantas vezes um universo abandonado. Se pudesse resgatar a parte do meu imaginário que se perdeu, talvez compreenderia melhor o porquê dessa distância cruel que se estabeleceu aqui – entre mim e o passado, entre mim e você.
Foi assim que aconteceu: você passou a adquirir as olheiras daquela mulher que entrou em nossa vida. Não que acredite que ela tenha tirado você de mim, porque o único capaz disso seria você mesmo, contudo na minha visão já não tão infantil o que vejo é o caos do qual você estava tentando fugir. E a fadiga por ter carregado toda uma mesma vida durante anos. Não te culpo pelo cansaço, pelo desejo de deixar passar a vida pelos seus olhos sem se importar, pelo desgaste em trabalhar numa relação na qual você tinha que ser sempre o cuidador. Você também mereceria ser cuidado, e você não tinha mais forças para se preocupar comigo. Eu vejo claramente, agora, o contraste entre as nossas duas épocas. Nós já fomos felizes, pai. Mas nós só éramos felizes porque você era feliz. Em algum momento, o pedaço de você que ansiava desesperadamente escapar e esquivar-se de tudo isso, de todas as obrigações com a vida e comigo, tornou-se mais relevante do que antigos passeios na praia que só existiam numa memória gasta e num universo pueril quase imaginário. E você não era mais feliz, subitamente. Eu via em seus olhos toda a amargura e a insatisfação. E via adentrar por alguma fresta das portas da nossa casa a angústia da convivência, a mediocridade de uma rotina sem arriscar-se, e uma mente que já não abrigaria a capacidade de dividir comigo meu mundo sonhador e abstrato.
E é por isso que, por muito tempo, abandonei grande parte de mim naquela casa que tornara-se hostil e resolvi fugir, bem como você havia feito. Só que você fez isso sem mover-se de lugar. Você pode dizer que fui eu quem te abandonou, pai, porque saí de casa sem te dar um último tchau ou te contar sobre a mágoa que reside em mim há tanto tempo. Você pode atribuir a mim toda a culpa, a irresponsabilidade, a destruição do nosso vínculo. E eu iria te dizer que não havia mais vínculo a ser destruído, e talvez então você reconheceria que continuar morando com você no mesmo espaço físico não era prova de nada. Simplesmente saí, e podem dizer que foi um ato de covardia. Não foi, pelo contrário. Foi a coragem, o ressentimento, mas no fundo, em algum lugar, não sei nem de que forma, ainda havia a esperança. Um resquício de ilusão, uma pequena chama que tentou ser apagada, porém continuou em mim por acreditar que a vida ainda pode ser bonita. Por acreditar que ainda posso alcançar a imensidão que vi um dia estando lá fora, por saber que existe mais, que há todo um universo do outro lado do oceano. Que haverá outras casas que abrigarão mais cores do que a de que fugi, e possivelmente serão ainda mais coloridas do que essa mesma já foi um dia. Que existem outras praias, ainda que no mesmo mar, e inúmeras outras conchas a ver por lá. Elas são trazidas pelo mar, e se ninguém pegá-las da areia, o que acontece com elas? Essa foi a pergunta que eu nunca te fiz, pai. Para onde vão as conchas? Acho que terei de descobrir por mim mesma.
Você não acreditaria se te dissesse, mas acredito na espera por dias mais claros, ainda. Acredito no som da água tocando a areia, no farfalhar das folhas quando caem sobre as ondas que correm sem sentido. As ondas não seguem um padrão exato, não é mesmo? Elas andam, simplesmente. Elas não correm para trás. Algumas são mais altas, mais fortes, mais velozes. Algumas fazem mais barulho. Eu sou como uma dessas ondas, pai. Não sei exatamente para onde estou indo, no entanto a única certeza que tenho é de que me movimento para frente, meio desorientada e sem caminhos traçados previamente. Estou andando, é só o que estou fazendo. E se fechar os olhos por alguns segundos, onde quer que esteja, posso enxergar todo o mundo que vi há anos atrás, em uma esfera completamente diferente. É como se pudesse me transportar para lá, instantaneamente, porque posso ver com clareza o céu azul mesclando-se ao oceano verde-água com pontadas douradas reluzentes. Eram raios de sol. E eu achava, também, que quando as conchas apresentavam rabiscos amarelados eram os raios de sol. Não eram, provavelmente, embora para mim fosse uma realidade incontestável. O que importa verdadeiramente, agora, é que posso fechar os olhos e enxergar tudo isso, e ainda ouvir bem lentamente o barulho do mar ao fundo, de forma que quase acredito que seja real. As angústias se vão, subitamente, e eu continuo ali – em meio ao mar imenso ouvindo o bater das ondas. Continuarei ali, imóvel, até que me afunde na profundidade da água imaginária e perceba que não passa de uma memória, a qual se torna cada vez mais apagada e distante com o tempo.
E é por isso que eu fui diferente de você, que desistiu de buscar pela vida que você soube que poderia ser sua se superasse os medos, o pudor e a carência de forças para agir. Eu vim para o mundo que sei que sempre esteve ali além da cidade desolada e pacata de minha infância, e deixei a vida que pertencia a você ser somente sua. Isso mesmo, eu me pus para fora. Facilitei o caminho para que você lidasse com a sua dor - pode abraçar a depressão da maneira que lhe convier, pode guardar todo o desagrado e a falta de vontade para você. Eu deixei o passado intacto onde deveria estar: nas minhas lembranças. Vou fingir que não aconteceu o momento em que o encanto se perdeu. Guardarei só a parte em que éramos felizes, você pode ter certeza.
Eu não tive mãe. Também não tive mais pai, após um tempo. Você quer saber o que eu tenho, então? Eu tenho as fantasias, o olhar doce acerca da vastidão mundana a qual sempre desejei conhecer, e tenho uma jarra repleta de conchinhas coloridas que roubei de uma casa que não abrigava mais tamanha beleza. Eu tenho a praia. Tenho meus olhos, minhas mãos, e enquanto eles forem capazes de tocar a vida, não desistirei dela tão fácil assim. Com você, pai, aprendi as mais diversas lições. Uma delas foi sobre o quão mais simples é entregar-se a uma dimensão onde não há vida, só a solidão que advém do cansaço. A outra, foi há um bom tempo atrás, e não me lembro muito bem, mas era algo sobre enxergar o mundo até onde ele existisse. Foi algo assim, você me perguntou até onde eu conseguia ver o mar. Olhei para os lados, para o fundo, e não via o fim. Eu te disse que ele não acabava nunca. Como acreditaria em tudo o que me soasse belo, realmente acreditei naquele momento que haveria o mar por todos os lados. “Então, se eu começar a nadar sem parar até ali em frente, quer dizer que não vou encontrar outra terra como essa nunca?” Não consigo me recordar do que você disse, mas posso supor e prefiro acreditar que foram as palavras que tenho em minha mente agora. Não sei se elas saíram da sua boca algum dia, ou se eu as inventei, não importa, prefiro guardar na minha lembrança que sua resposta foi essa: Depende do que você estiver procurando – se quiser a terra, você pode nadar até achá-la. Se quiser o infinito, não importa para que direção você ande, é ele que você vai encontrar.

Da janela do navio.



Observava o espaço aberto como quem quisesse pescar qualquer coisa que estivesse no ar. Alguma emoção, alguns sorrisos, alguns passos de quem se afasta, alguns passos de quem se aproxima. O comportamento das pessoas era tão previsível. E olhava, esperando por algum gesto diferente, alguma reação surpreendente, algum abraço cheio de vida ou até mesmo algum olhar perdido buscando o mar. O mar estava ali em volta para ser visto, afinal. As pessoas, contudo, pareciam imersas dentro de si mesmas.
O mais interessante que havia enxergado fora um casal de velhinhos que pareciam carregar um ao outro em direção ao mirante. Eles caminharam até a ponta e então sentaram em um banco que havia em frente ao céu aberto. O senhor fechou os olhos, logo após a senhora fechou os olhos. Ventava. Havia a brisa, e uma junção de barulhos – o do mundo que existia por fora, e o das pessoas que se enclausuravam ali dentro, muito embora estivessem em um lugar em direto contato com uma das paisagens mais intensas que ela já havia visto. Perguntou-se o que o casal de velhinhos estaria pensando, e o porquê de, ao contrário do resto das pessoas, eles pareciam querer verdadeiramente sentir a brisa.
Imaginou, então, ela e o marido nessa idade, ambos sentados num banco no mirante de um navio, de olhos fechados pensando em algo que ela não conseguia imaginar o que fosse. Sentiu certa repulsa à idéia. O casal de senhores parecia cansado. Aquele momento, aquela parada em frente ao mirante, poderia ser uma das poucas situações de fuga da rotina que eles viriam a ter até o fim da vida. Ela não saberia dizer, na verdade, quanto tempo mais de vida eles teriam. Sentiu-se mal por estar tendo esse tipo de pensamento. O que sentia, no entanto, era que o casal de senhores que queriam sentir a brisa parecia, de alguma forma, estar morrendo ali.
Desviou o olhar do casal por um instante. Desejou poder fechar os olhos e sentir-se ir morrendo aos poucos. Quando ouviu a voz do marido que argumentava com o garçom sobre algum equívoco, sobre cervejas e mais o que quer fosse, foi como se houvesse sido acordada de um longo sonho.
- Estou te dizendo, eu pedi a cerveja uruguaia e você me trouxe essa aqui.
O garçom se desculpou, no que ele continuou a se lamentar. “É uma pena. É uma pena o mau serviço desse navio.” E daí, Fábio, é só cerveja. É tudo a mesma coisa. Não, não é, ele responderia. E então começaria a descrever brevemente cada tipo de fermentação da cerveja. E diria, prove, meu amor, e me diz se essa não é muito melhor do que qualquer outra. Ela diria que sim, embora não visse diferença alguma entre uma e outra.
Enquanto Fábio bebia sua cerveja como quem bebe a última gota de água no deserto, ela focou num grupo de crianças que brincavam no playground. Elas rodavam, corriam, giravam, dançavam, gritavam. Elas tinham mais vida que quaisquer outras pessoas ali.
- Quando a gente é criança, pode sair correndo, pulando e gritando por aí que ninguém nos julga, ninguém dá bola. Ah, eu queria tanto, às vezes, quando dá aquela vontade imensa de sair correndo e gritando, poder fazer uma maluquice dessas. – disse, mais para si mesma do que para o marido.
Ele riu.
- Por que você iria querer sair correndo e gritando por aí?
Ela continuou observando as crianças inquietas que corriam por todos os lados.
- Todo mundo devia ter o direito de poder sair correndo e gritando por aí de vez em quando. As crianças podem. Você vê como elas ficam mais calmas depois disso? Elas liberam a energia, elas aliviam... Sendo adulto, a gente acaba aprendendo a ser tão contido. Essa cautela toda, para quê?
Fábio acompanhou o olhar da esposa às crianças, sem entender o que a intrigava tanto nessa mania de observar.
- Você é engraçada.


Quando anoiteceu, ela e o marido jantaram. O hall do navio era bonito, bem decorado, e as pessoas eram todas bem vestidas. Era uma espécie de situação social na qual ninguém se falava. Cada mesa abrigava uma história diferente. As famílias pareciam todas gente de classe, de modo que a elegância presente no local era inegável. Ela também sabia se vestir. Pusera o colar de pérolas que ganhara do marido na sua noite de noivado. Fábio não lhe dera um anel, como mandava a tradição. Fábio lhe dera um colar de pérolas, porque valorizaria seu colo e seu pescoço. Ele adorava seu pescoço fino e macio. Mais tarde da noite, ele retiraria o colar delicadamente e beijaria a pele suave como um beija-flor que busca o pólen. Alguma parte dele necessitava daquele momento, bem como necessitara dar um colar de pérolas à mulher para certificar-se de que seu pescoço, a parte do corpo que mais apreciava, carregaria algo dele. Ela sempre quisera ser presenteada com um anel de noivado, daqueles em que a caixa é discreta, mas a pedra grande e espelhada. Ela olharia o próprio rosto através da pedra espelhada, seria só levantar a mão sobre o rosto. Ajeitou o colar de pérolas no pescoço e sorriu para o marido. Nesse mesmo instante, o garçom trouxe uma jarra de clericot.
- Achei que você iria gostar. – ele sorriu.
Ela olhou a jarra com as pequenas frutas coloridas.
- Mas você gosta tanto de cerveja.
- É, gosto. Mas você prefere o vinho.
Nesse momento, lembrou-se do motivo pelo qual estava com Fábio. Ele era um bom homem. Eram os dois adolescentes quando se casaram. Ele era um garoto bonito, de bons modos e família rica. Seus pais praticamente haviam assinado o contrato de casamento e dito o “sim” na hora do altar por ela. Eles sabiam que não poderiam pagar uma faculdade para a filha, e nem dar a ela o tanto que gostariam. Amanda tinha apenas 17 anos quando namorava Fábio nos fundos de casa, e os dois olhavam as estrelas no pequeno jardim sem flores. Já na casa dele, haveria muitas flores. Amanda não hesitara em aceitar o casamento, ela gostava de flores. Na casa dele, um quintal enorme, móveis de tapeçaria requintada, um armário com colônias francesas. E ela gostava da maneira como Fábio cheirava. Ele dera a ela um ou outro perfume para que pudesse cheirar seu pescoço com a fragrância de seu gosto, aquela que ele escolhesse. Amanda nunca cogitaria usar um perfume que não fosse os que Fábio lhe dera. Se ela cheirava, era para ele. Da mesma forma, ela vestia o colar de pérolas para ele naquela noite.
Amanda bebeu quase a jarra inteira de clericot durante o jantar. No entanto, comia pouco. Sempre comia pouco.
Em poucos segundos, iniciou-se o ritual de música presente em todas as jantas no navio. Assim que a banda entrava, os casais deixavam a mesa para dançar. Isso é tão brega, ela pensava. Eles dançariam todas as noites, no entanto. O bom senso mandava Amanda levantar e dançar com o marido, assim como todos os outros casais felizes faziam após o jantar. Eles acariciariam a mão um do outro, e ela recostaria a cabeça em seu peito enquanto dançavam. Todos os casais dançavam. Amanda fechou os olhos. Ouvia a música como se ao fundo de um bueiro, como um eco em sua mente.
Pensou: tem uma dor perdida dentro de mim. Tem uma dor em algum lugar, que não sei do que se faz, tampouco de onde veio. Tem alguma coisa fora do lugar. Esse incômodo, esse desespero, essa vontade imensa de me afundar em qualquer outro oceano que não este aqui. Se estivesse longe, estaria longe dessa sensação de desorientação acerca do monte de situações às quais estava submetida. É tanta coisa, é tanta informação... É preciso tanto equilibro e tanta força para conseguir lidar com tudo isso. Uma vida inteira num mesmo corpo, os pensamentos limitados dentro de uma mesma mente, e o esforço para manter-se íntegra. Até quando permaneceria intacta? Essa dor perdida, ela não pertence a lugar nenhum, ela não tem origem. Ela não veio do trauma, ela não veio da perda, ela não veio de um sofrimento concreto. Não conseguiria sequer dizer se ela existe de fato ou se seria imaginação. O que sentia, na verdade, era a distância. Uma distância enorme entre estar, ali, no hall de jantar do navio, presa aos braços do marido e àquela mesma sinfonia que tocava sem nenhum novo acorde e entre onde estaria seu pensamento naquele momento. O pensamento divagando pelos ares, pelos mares, por todas as especulações e caminhos que poderia ter seguido se não estivesse ali. O corpo permanecia no mesmo lugar, e as pernas já se moviam automaticamente de um lado para o outro, enquanto os braços envolviam o pescoço de Fábio sem emoção. Olhou para cima, diretamente nos olhos do marido, no que pôde ver que estavam tão perdidos quanto os dela.


Mais tarde, no quarto, Fábio estava cansado demais para retirar seu colar de pérolas e beijar seu pescoço. Ele sempre retirava o colar antes de fazerem amor. Fábio falava ‘fazer amor’, Amanda não sabia exatamente o que isso significava. Ultimamente, eles não haviam feito nem um nem outro. Nem o que Fábio chamaria de amor, nem o que Amanda faria sem saber dar um nome. Ela despiu-se, enquanto o marido já estava na cama dormindo. Ele sempre dormia fácil, e como ela queria ser assim. Como queria poder deitar, fechar os olhos e apagar. Fábio não devia sequer sonhar durante a noite, de tão profundamente que dormia. Às vezes, via-se falando com ele, e ele já estava dormindo. Amanda sentia-se sozinha quando o marido dormia. Era um momento só dela, e ela não saberia o que fazer com esses momentos. Acostumara-se a viver com o marido, a usar os perfumes que ele escolhera, a dançar valsas sem sentido durante os jantares, a vestir um colar de pérolas. Com o marido já adormecido ao lado dela, Amanda retirou o colar e pôs sobre a mesa.
Ficou parada por um longo tempo olhando estaticamente a janela do quarto do navio. Era tudo azul, era tudo ondas. A sensação era boa e libertadora, de estar bem longe da terra, de sentir-se no meio da água. Sentiu-se aliviada, por um momento. Ficou olhando a janela e quase pôde ver passar por ela as mais diversas cores, peixes, e até mesmo pensou ter visto traços de um rosto delineados pela água. Assustou-se, então, pensando estar alucinando. Passado esse momento, enxergou tudo azul novamente. A janela constituía um círculo perfeito azul no meio do quarto. De repente, começou a enxergar na água algo parecido com um redemoinho, ou um vento, ou alguma força que parecia querer puxá-la dali. Sentiu uma vontade enorme de quebrar bruscamente o vidro da janela e entrar no meio daquele universo oceânico que enxergava agora. Era um universo distante e totalmente distinto do mundo real, parecia um delírio. Ela sabia, no entanto, que a água era real. Esse oceano é de verdade. Talvez o que estivesse enxergando ali não fosse, ou ainda fossem as projeções de sua mente naquele fundo azul. Esse tipo de delírio ela jamais enxergaria longe dali. A janela abrira as portas de sensações perdidas e escondidas dentro dela. Ali, não haveria repressão. Continuou olhando a água, incapaz de realizar nenhum movimento. Teve certeza de que algo estava acontecendo ali. Subitamente, enxergou então a si mesma, do outro lado da janela, submersa no meio do oceano. Aquela que estava do lado seco da janela espantou-se, mas não sentiu medo. A que estava flutuante nas profundezas do mar nem fazia esforço para nadar, parecia estar caindo livremente pelo espaço. Ela estava isenta de qualquer dor ou receio desse mundo real, ela sentia-se longe de qualquer memória ou situação pela qual já tivesse passado. Estava rumando a algum lugar bem fundo, e sentia-se imensa, enquanto o resto do mundo lá em cima era apenas resquícios da luz do sol refletindo pela água.

Acordou com luzes e barulhos vindos do lado de fora da cabine. Fábio ainda dormia. Lembrou-se vagamente de ter tido algum tipo de visão ou sonho na noite anterior. Não saberia dizer o que era real e o que era imaginação. Olhou a janela. Viu tudo azul, mas não viu mais nada. Fábio acordou.
- Meu amor, você teve um sono perturbado ontem. Ficava se mexendo a toda hora na cama. – e acariciou os cabelos da esposa afetivamente.
Amanda tentou resgatar alguma lembrança, no entanto a mente estava limpa, vazia. Parecia ter descansado, enfim. Sentiu calma e alívio como há muito tempo não sentia.
- Preciso de um café.
Fábio levantou-se e olhou a janela, pela qual passava rastros de luz. Puxou a corda da cortina, fechando-a.
- Como está claro aqui dentro. Ta certo então, vista-se e vamos para o café-da-manhã.
Amanda sentia uma vontade descontrolada de comer naquela manhã. Fábio parecia estranhar a gula da esposa, mas não disse nada.
As horas passaram depressa durante o dia. Já era de tarde quando ela ouviu algumas pessoas comentando no deque da piscina: é, hoje eles vão abrir para a gente mergulhar. Mergulhar?, pensou. Será que eles vão dar o colete para a gente entrar na água? Ah, mas eu não tenho coragem – ouviu uma moça comentar. Isso é coisa para gente doida, e se a água for fria, e se eu não souber nadar, a moça dizia.
- Vamos, Fábio? Vamos mergulhar?
Fábio mergulhou. Amanda estava inquieta, embora sentisse uma paz enorme. Já na água, sorriu para o marido enquanto vislumbrava o céu aberto. Ele sorriu de volta, abraçaram-se. Aquele abraço molhado e a pele roçando intensamente na sua fez com que ela percebesse uma energia há muito perdida. Não descreveria com nenhuma outra palavra, energia, é só o que era. Amanda fechou os olhos, dentro do abraço, e parou de ouvir todos os sons de fora. Nem o barulho das ondas, nem o que Fábio falava em seu ouvido, nem gaivotas. Amanda paralisou ali. Não pensou em mais nada, não viu nenhuma imagem. Viu passar pela mente como num flash rápido a memória que se encontrava esquecida dentro dela desde que a enxergara aquela noite na janela do navio.
- Fábio...
Ele sentiu algo de estranho em sua voz.
- O que é, Amanda?
Ela se soltou de seus braços, olhou para baixo. Lá embaixo, lá embaixo o mundo era outro, da janela do navio o mundo era outro.
- Me afogue.
Isso mesmo, agora. Estou pedindo desesperadamente que você me afogue! Aqui, nessa água. Quero ir fundo, bem fundo. Foi uma idéia impensada que tive agora, mas sinto que tem algo me chamando lá no fundo. Só irei saber se for lá.
Fechou os olhos e pôde sentir a sensação de estar se perdendo da vida, e só afundar até que a respiração cessasse, que o corpo cansasse; de estar se distanciando da superfície, indo em direção a algo bem profundo no meio do mundo. Antes que pudesse perceber, já teria ido, quase que como num sonho, um delírio lindo de libertação do qual não teria de acordar. Naquele momento, só o que precisava era sentir a água.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Moléculas

Desfaziam-se os diversos chãos de minha obsessão, baseada em histórias que nunca ocorriam e que, incapazes de buscar um teto concreto, explodiam-se em pó, resumindo-se a nada. O que um dia foi ilusão, agora seria desilusão.
Como moléculas que nunca se juntavam, de tão distintas que eram, pondo-se lado a lado não se colavam. Como dois destinos que jamais se encaixam, ou olhos que, por mais que se encarem eternamente, nunca se encontram; corpos que, independente de quantas vezes se encostem, são incapazes de sentir o outro. Como a vasta distância que separa, mas que une. Minha razão dissipou-se com o mesmo ar que respiro, e que um dia virá também a fugir de mim.
Era tudo uma mentira. Eram as minhas especulações. Era uma dimensão fantasiosa, com alguém que não era eu, porque aproximava-se da perfeição. Nada seria perfeito, nesse mundo real. As nossas essências não se comunicam. Eu achei que poderia amar alguém, mas pouco sei diferenciar amor de dor. As moléculas se desfizeram. A minha idealização, em um universo bem distante deste aqui, rachou. Rompeu. Eu não pertenço a você. Tampouco pertenço a mim. Ansiaria mesmo é ir para o mundo perfeito que eu vi, que enxergo todos os dias antes de dormir, em alguma realidade qualquer.